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Três bofetadas por António Fragoso
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António Fragoso morreu a 13 de Outubro de 1918. Poucas horas antes de morrer, muito fraco e febril, subiu as escadas para se sentar ao piano e tentar acabar a sonata que ficou inacabada. Não foi capaz

Mil novecentos e dezoito, passam agora cem anos. A I Guerra Mundial estava a terminar e Portugal combatia ao lado dos Aliados, mas as piores baixas surgiram no fim, quando um adversário inesperado atravessou fronteiras de forma invisível. O vírus H1N1, responsável pela pneumónica, ou ‘gripe espanhola’, foi um inimigo impiedoso. Em Portugal matou mais de 60 mil pessoas e no mundo inteiro morreram 20 milhões de homens, mulheres e crianças vitimados pela mesma doença.


Amadeo Souza-Cardoso e José Alvalade foram duas vítimas célebres, mas houve muitas mais. Os agora santos Francisco e Jacinta Marto também morreram com a mesma peste, assim como João Lúcio, poeta e advogado, Pedro Blanco, compositor e pianista, entre outros. Nesses anos Portugal perdeu uma geração de colossal talento pois Mário de Sá Carneiro suicidara-se em 1916 e Santa-Rita Pintor morreu em 1918 com tuberculose. A pneumónica dizimou famílias inteiras e devastou um país já em estado miserável, exangue pelas contingências da guerra.
António Fragoso, prodigioso músico e compositor nascido e criado na Pocariça, no concelho de Cantanhede, morreu com 21 anos. Tinha quatro irmãos e apenas um sobreviveu. Maria Isabel morreu no mesmo dia que ele, Maria do Céu morreu no dia seguinte e Carlos dois dias depois. Na mesma semana, em Outubro de 1918, a família Fragoso viu sair 7 caixões pelas janelas de sua casa. Morreram 4 filhos, mais uma tia,duas primas e uma empregada. Os caixões saíam pelas janelas para que os que permaneciam vivos não se deixassem abater pela tragédia.

Maria Fernanda, a filha mais nova, tinha apenas 2 anos quando tudo isto aconteceu e só sobreviveu porque foi literalmente arrancada de casa, dos braços de sua mãe, pelos tios que moravam no Porto. Viveu toda a sua vida consciente da catástrofe que arrasou a família. Casou, teve 6 filhos, ficou viúva aos 34, e até ao último dos seus dias teve apenas dois objectivos: dar a cada um dos filhos condições e ferramentas para singrarem na vida, e dar a conhecer ao mundo a música do seu irmão António.

António Fragoso revelara o seu talento musical muito cedo. Aos 6 anos começou a ler pautas e a tocar piano com António dos Santos Tovim, seu tio e médico em Cantanhede, homem de vasta cultura musical que teve uma influência determinante nos primeiros anos de formação do sobrinho. Aos 12 anos António Fragoso começou a compôr as “Toadas da Minha Aldeia”, aos 15 anos publicou a obra, e aos 16 tocou-a pela primeira vez em público. Foi muito aplaudido pela crítica musical, e este conjunto de acontecimentos marcantes despertaram nele a vontade de seguir os estudos de piano.

Os pais de António, grandes apreciadores de música, não só trataram de contratar professores privados para os filhos, como compraram a única telefonia de que havia memória nesses tempos na freguesia da Pocariça. Ao serão sentavam-se para ouvir em família concertos e recitais. António estudava e tocava piano, enquanto duas das suas irmãs aprendiam violino e violoncelo. Apesar da guerra e do estado do mundo, a vida familiar dos Fragoso corria a favor nesses anos, embora o pai se inclinasse muito para que este seu filho fizesse a Escola de Comércio.

Quem conheceu bem António Fragoso conta, no entanto, que todas as suas fibras eram musicais e jamais seria capaz de estudar outra coisa que não fosse piano e composição. Depois de um ligeiro braço de ferro com o seu pai acabou por se matricular no Conservatório Nacional de Música de Lisboa, onde fez o Curso Superior de Piano com 20 valores, a classificação máxima. António condensou os 6 anos de estudo em apenas 2, proeza admirável e eloquente do seu talento e capacidade de estudo.

Alegre, criativo e comunicativo, fazia bons amigos com facilidade e levava-os consigo à Pocariça aos fins de semana e nas férias. Com os amigos músicos estudava e tocava até altas horas da noite. No Verão, estes recitais caseiros tocados numa casa de janelas sempre abertas, tornaram-se um acontecimento incontornável e vinham pessoas de toda a freguesia e redondezas ouvir os músicos. De tal forma que a estrada que passava perto da casa se enchia de gente de uma ponta à outra. Muitos traziam cadeiras e ali ficavam sentados nas noites de calor em silêncio, a ouvir.

Apesar de ser de natureza muito alegre e espontânea, António Fragoso compôs sempre música muito nostálgica, mas dizem que o paradoxo lhe assentava bem porque lhe dava profundidade e intensidade. Fazia-o mais completo e revelava o seu génio. A mãe e o pai acompanhavam o seu crescimento e reconheciam a sua veia. Desistiram de o ver formado em Económicas e davam-lhe asas e espaço para aprofundar os seus conhecimentos musicais. A madrinha de António, tia solteirona que morava lá em casa, era constantemente solicitada para o ouvir tocar.

Tinha uma predilecção por este seu afilhado e acorria ao menor sinal. Acontecia com frequência António estar a fazer a barba à navalha, ainda em roupa de quarto, e ter uma inspiração para uma composição. Sempre que acontecia, chamava a madrinha e pedia-lhe para o ouvir tocar.

– António, tens que escrever já isso, porque senão esqueces-te!

A própria madrinha corria com papel e tinta, enquanto António evoluía ao piano, com a barba meio feita e meio por fazer, a cara cheia de espuma branca.

Nos seus anos de juventude e ainda como estudante, António Fragoso iniciou uma vida artística que teve impacto e reconhecimento nos círculos culturais do país, sendo convidado para inúmeros recitais, concertos públicos e soirées privadas. Não só era muito aplaudido como foi amplamente recompensado, ao ponto de num destes serões lhe terem dado cinco mil réis, uma verdadeira fortuna para a época. Numa das 650 cartas que escreveu em vida e que agora fazem parte do espólio da família, escreveu ao pai a contar isso mesmo e a dizer que no dia seguinte foi à Baixa de Lisboa e gastou todo o dinheiro em partituras e livros de música. Partituras de compositores que, contava ele na carta, não o deixavam tocar no Conservatório.

Impressiona muito ouvir familiares e estudiosos contarem mil episódios eloquentes do caracter e do génio de António Fragoso pois era apenas um ‘miúdo’, viviam-se tempos de guerra, Portugal era um país fechado e culturalmente muito atrasado, mas este jovem recebia, absorvia (e percebia) muito rapidamente tudo o que se estava a fazer de vanguarda na Europa, compondo as suas próprias obras com uma originalidade fabulosa. Tudo isto se passava entre a Pocariça, o Porto e Lisboa, nos anos difíceis da I Grande Guerra, o que torna ainda mais admirável a capacidade e o talento de António Fragoso, sobre quem João de Freitas Branco, musicólogo, disse ser “um dos mais poderosos talentos da sua geração, pois entre as suas peças encontram-se páginas surpreendentes num compositor com menos de 21 anos”.

Pedro de Freitas Branco, Maestro contemporâneo de Fragoso, tinha ido ainda mais longe quando disse que “António Fragoso tinha a envergadura necessária para se tornar o maior compositor português de todos os tempos. Era um músico intelectual. A sua vincada personalidade impunha-o tanto à nossa admiração, como o seu génio de compositor”.

António Fragoso morreu a 13 de Outubro de 1918. Poucas horas antes de morrer, já muito fraco e muito febril, subiu as escadas para se sentar ao piano e tentar acabar uma sonata que ficou inacabada. Não foi capaz porque já não tinha cabeça para criar. Desistiu de compor, mas não de tocar. Escolheu uma partitura da sua estante e tocou uma peça muito bela mas também muito fúnebre de Grieg. Chamava-se “A Morte de Áse”, da suite Peer Gynt. Nunca ninguém saberá se teve uma premonição sobre a hora da sua própria morte.

O pai e a mãe de António Fragoso, que enterraram 4 filhos e 2 sobrinhas em 5 dias, foram resgatados pelo tio do Porto (catedrático de Medicina que também teve um papel determinante na educação de António) e viveram naquela cidade e em Lisboa quase uma década. A mãe de António ficou praticamente muda até ao fim da sua vida e nunca mais a ouviram conversar ou rir como antes da morte dos filhos e sobrinhas. O pai, advogado, conseguiu sobreviver a todas estas perdas, mas também nunca mais foi quem era.

Em 2009, quase cem anos passados e depois de levarem “três bofetadas”, como diz com amor e humor Eduardo Fragoso, seu sobrinho directo, os herdeiros constituíram a Associação António Fragoso com o propósito de deixar às novas gerações o seu legado musical e literário, assim como comemorar o centenário da sua morte.

As três bofetadas de que fala Eduardo Fragoso, um dos seis filhos de Maria Fernanda, a única irmã de António que sobreviveu à pneumónica, foram três momentos que despertaram a família do torpor causado pela dor causada por tantas mortes prematuras.

Primeira bofetada: um disco interpretado por Miguel Henriques, que incluía as peças para piano publicadas por uma editora, e a Sonata. Nessa altura ainda não se tinham descoberto os inéditos que se encontravam na ‘mala do António’. Segunda bofetada: um movimento iniciado pelo candidato à Câmara de Cantanhede, João Moura, professor catedrático, para divulgar a vida e obra de Fragoso. Terceira bofetada: um grande colóquio na Culturgest em 2008, que reuniu musicólogos de todo o mundo apostados em estudar a fundo a obra de António Fragoso e ver as suas ligações com outros compositores.

“Foi uma pedrada no charco muito grande e despertou-nos para a urgência de celebrar o legado de António Fragoso!” diz Eduardo.

Graças a estas três bofetadas, por assim dizer, está em curso o ano do centenário, com uma extraordinária programação que inclui dezenas de concertos e eventos musicais em Portugal e no estrangeiro, que terão um momento inesquecível no próximo Verão, a 14 de Julho, dia em que se vai recriar na casa senhorial da Pocariça um verdadeiro concerto de janelas abertas. Nesse dia voltará a haver pessoas sentadas em cadeiras na rua, à volta da casa, e a cobrir a estrada a todo o comprimento, de uma ponta à outra. Como nos velhos tempos, quando António tocava com os seus amigos.


Fonte: http://observador.pt/opiniao/tres-bofetadas-por-antonio-fragoso/

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