No verão, António Fragoso juntava os amigos em casa a tocar pela noite
fora - e, como estava calor, abriam as grandes janelas que davam para o
largo principal.
NO PASSADO fim de semana fui a um concerto absolutamente invulgar.
Numa terra chamada Pocariça, no concelho de Cantanhede, teve lugar um
recital de piano em que os espetadores não viam os pianistas. Só os
ouviam, através das janelas abertas de par em par da sala onde eles
tocavam. Por isso se chamava Concerto das Janelas Abertas.
Atuaram nove pianistas, todos muito jovens, todos muito talentosos. E
a original situação em que artistas e público se encontravam tem uma
razão de ser histórica.
A Pocariça é a terra natal do compositor António Fragoso, falecido em
1918, com 21 anos, em consequência da pneumónica - uma gripe terrível
que devastou a Europa. Durante décadas, porém, a sua notável obra ficou
quase desconhecida. Até que um sobrinho-neto, Eduardo Martins Soares
(que hoje assina Eduardo Fragoso), a arrancou ao esquecimento e a
começou a dar a conhecer ao país.
SUCEDE que Eduardo Martins Soares (ou Fragoso) foi o meu primeiro
editor. Estava um dia sossegado no atelier de arquitetura onde
trabalhava quando recebi um telefonema de um desconhecido. Ele disse-me
que era editor da Bertrand, tinha lido um artigo meu no jornal
República, gostara, e perguntava-me se não queria escrever um livro
sobre o tema.
O artigo tratava da ação dos vários partidos da extrema-esquerda no
período que se seguiu ao 25 de Abril. Pensei dois minutos e respondi que
sim. E nas primeiras férias depois da revolução - que passei com o meu
pai nas Donas, Fundão (terra da sua família) - comecei a escrever
febrilmente. Até que vi que o tema dera um artigo de jornal mas não dava
um livro.
Assim, escrevi ao Eduardo (na época não havia telemóveis e a casa
onde estávamos não tinha telefone) pondo-lhe a questão: não conseguia
escrever um livro sobre o assunto que me propusera, mas podia escrever
outro sobre a transição da ditadura para a democracia, com enfoque no
marcelismo - a sucessão de Salazar por Marcello Caetano e a queda deste
às mãos dos militares. Ele aceitou a mudança, e o livro seria publicado
ainda em 1974 com o título Do Estado Novo à Segunda República, sendo um
razoável êxito, com semanas consecutivas a liderar os tops de vendas.
DESDE AÍ, eu e o Eduardo ficámos amigos - embora com contacto muito
intermitente. Ele teve uma vida agitada, com tragédias e vitórias, até
se fixar na Pocariça, terra do tio-avô, e se empenhar na divulgação da
sua vida e obra.
É aqui que se enquadra o Concerto das Janelas Abertas. No Verão,
António Fragoso juntava os amigos em casa a tocar pela noite fora - e,
como estava calor, abriam as grandes janelas que davam para o largo
principal. E ali começou a juntar-se gente da terra depois do jantar.
Alguns traziam banquinhos e ficavam a ouvir pela noite fora a música que
saía pelas janelas. A alturas tantas era uma multidão de ouvintes.
Agora, que se vão cumprir 100 anos sobre a morte do compositor, este
concerto procurou reconstituir esses serões. Com alguma ajuda
tecnológica, claro, pois na rua foram colocadas duas grandes colunas
para amplificar o som.
O espetáculo juntou centenas de pessoas. Talvez umas 300. Muitas
sentadas em cadeiras de plástico, outras em pé, outras ainda dentro de
automóveis parados à entrada do largo. A noite estava fria, mas ninguém
arredou pé. Todos tinham a sensação de estar a assistir a um momento
especial. A um espetáculo raro. E foi mesmo uma noite memorável.
Como no dia seguinte tinha um almoço perto de Santarém, decidi ficar
essa noite na região. Optei pelo Hotel das Termas da Curia, um simpático
local situado mesmo dentro do parque romântico das termas, com um
grande lago central e um espesso arvoredo.
Ao voltar do concerto na Pocariça, qual não foi o meu espanto quando,
ao chegar ao hotel, ouvi cantar. O som vinha do parque. Fui ao encontro
da música e o que vi? Um grupo coral que cantava alegremente músicas
populares ou muito conhecidas - o Malhão, Malhão, a Alegre Casinha, a
Lisboa Menina e Moça - mas em regime de improviso. Estranhei: o que se
passava ali?
DEPOIS percebi: o grupo atuara naquela noite no Parque das Termas e,
depois de o público debandar - e enquanto uns arrumavam a aparelhagem,
enrolando metodicamente os fios e metendo o material em caixas - os
outros cantavam como adolescentes, a fazer tempo para partirem.
Cantavam por gosto, pelo gosto de cantarem em grupo, pela alegria de
cantarem por cantar - sem ser para receber dinheiro nem para agradar a
alguém. E nós ali ficámos, eu e a minha mulher, com a estranha sensação
de sermos os únicos espetadores daquele show espontâneo, como se
cantassem só para nós. Mas cantavam só para eles.