Parecendo estar em moda eleger o melhor português de sempre, porque não escolher também o melhor pocaricense de sempre, o grande pocaricense? É o que aqui nos propomos fazer, bem escolhendo, claro.
Se é possível fazer um magnífico concurso para eleger "o maior" ou "o melhor" dentre os milhões que já nasceram e morreram por Portugal (ou não), deve ser infinitamente mais fácil fazê-lo numa freguesia com muito menos habitantes, ainda mais com a vantagem do conhecimento de proximidade que só os meios pequenos, felizmente, permitem (pequenos em densidade populacional, critério meramente estatístico, não em alma e significado, decerto).
Mas... reflictamos um pouco, o que é isso de "ser português"? O que faz com que alguém possa dizer: "sou português"? Nascer em Portugal, em território português, basta, dirão alguns.
Pois bem, então nesse caso, aplicando o mesmo critério à nossa freguesia, os pocaricenses estariam em extinção, já que as filhas e os filhos dos pocaricenses já não nascem na freguesia; assim foi outrora, quando nasciam em casa, na própria casa, muitos ajudados pela parteira que, em Arrôtas, acabaria por dar nome a um largo.
Não, ser português é identificar-se com um certo património comum ao mesmo tempo que se consente uma vivência partilhada com uma comunidade. O património ou legado comum encontra-se na história, o consentimento no presente; a herança comum é de todos, o consentimento depende de cada um.
Assim, a identidade revela-se essencialmente no desejo de viver em comum e nem os exilados nem os emigrantes escapam a esta definição, pois continuam a ser portugueses fora do espaço territorial nacional: não seriam exilados nem emigrantes se não fossem portugueses.
Podemos pois dizer que são pocaricenses todos aqueles que valorizam um certo legado comum ao mesmo tempo que consentem em viver juntos, em comunhão de interesses, querendo ser pocaricenses. Estando fisicamente aqui ou acolá, não é isso o mais relevante, interessa que na freguesia tenham as suas referências e as suas memórias, e aí se identifiquem com a comunidade.
Porém, bem mais difícil é determinar e identificar claramente esse património, que naturalmente se encontra no passado, nas memórias, ainda que nem todas interessem pois não se valoriza tudo por igual: só importam as que revelam o melhor da comunidade, não a totalidade do que nela foi feito. Nem tudo o que é história faz parte da identidade individual.
Pena que a história seja servida aos domingos e terças à noite em comprimidos mirabolantes de cinco minutos para cada figura histórica, em programas televisivos que não fazem mais que caricaturar o passado, mutilando-o, aparentemente numa maravilhosa e participada votação: pelo que foi dito, até à data, parece que já participou uma multidão de gente: 1%! 1% dos portugueses: mas que grande representatividade, sim senhor!
Mas a ignomínia maior nem é entender aquela votação como um retrato do país, o maior engano passa por escolher um, como se um grande homem fizesse a história; seria como se agora pegássemos num pocaricense, qualquer um desses que, por exemplo, deu mais de si à comunidade e, como que por magia ou sugestão, esquecêssemos todos os outros que contribuíram para que esse indivíduo pudesse ser o que foi e fazer o que fez.
A história dum povo, seja dum país ou duma freguesia, é de todos: não só pertence a todos como é feita por todos. Acreditar em heróis, em super-homens ou em génios que dum dia para o outro, com que por magia divina, fazem toda a história é querer uma mentira.
Que seria, digamos, dum Camões se os seus pais não o tivessem ensinado a andar e a comer? Que seria dum Camões sem o professor que lhe ensinou a distinguir um a dum b? E quem sabe como se chamava o seu pai? Bem... era o pai do Camões, pois claro! Mas e como se chamava o seu professor? Bom... era o professor do Camões, pois claro!
Não chega, é curto. Se existem importantes figuras históricas, que as há, claro, não devemos esquecer que todo o homem e toda a mulher existem numa circunstância social, dependentes de outros: o homem é um ser social, todos o sabem. Porquê, então, esquecer a circunstância?
Julgo que fica assim resolvido o enigma do maior pocaricense de sempre, encontramo-lo todos os dias no local habitual: repousando no espelho. A propósito, deixo aqui um poema escrito por um escritor incontornável do séc. XX, de nome Bertold Brecht, que numa elevada eloquência criadora nos faz Perguntas dum trabalhador que lê, em tradução de Paulo Quintela:
"Quem construiu a Tebas das sete portas?
Nos livros estão os nomes dos reis.
Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?
E a várias vezes destruída Babilónia -
Quem é que tantas vezes a reconstruíu? Em que casas
Da Lima refulgente de oiro moraram os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta
A Muralha da China? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou? Sobre quem
Triunfaram os Césares? Tinha a tão cantada Bizâncio
Só palácios para os seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida,
Na noite em que o mar a engoliu, bramavam
Os afogados pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os Gálios.
Não teria consigo um cozinheiro ao menos?
Felipe de Espanha chorou, quando a Armada
Se afundou. Não chorou mais ninguém?
Frederico Segundo venceu na Guerra dos Sete Anos. Quem
Venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um Grande Homem.
Quem pagou as despesas?
Tantos relatos.
Tantas perguntas."