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Crónicas de Vagar > Região
Cultura democrática

Aristóteles (384-322 a.C.),  o Filósofo por antonomásia, quando estudou as formas dos regimes políticos, encontrou quatro espécies de democracia, assim:

 

"A primeira espécie de democracia é a que se determina sobretudo em função da igualdade. Ora a lei de tal espécie de democracia confirma a igualdade: nem a classe dos ricos nem a dos pobres é superior uma à outra, nem qualquer delas tem domínio sobre a outra, mas ambas são semelhantes. Nesse sentido, se a liberdade é condição preponderante na democracia [...] tal como o é a igualdade, então estes dois princípios serão mais poderosos quando todos os cidadãos, sem exceção, se encontrarem congregados na vida da cidade, na maior medida possível. Como de facto é o povo que forma a grande massa dos cidadãos, e dado que a decisão da maioria é suprema, o que acabámos de expor identifica-se necessariamente com uma democracia. Todavia, não passa de uma das espécies de democracia.

 

Existe uma outra espécie de democracia: aquela em que as magistraturas [leia-se "as funções públicas"] são exercidas em função do montante tributário, o qual de resto é bastante baixo. Deve participar das magistraturas quem possui recursos e não quem os perdeu.

 

Outra forma de democracia é a que consiste em elevar às magistraturas todos os cidadãos considerados  irrepreensíveis, mas sempre sob o poder supremo da lei.

 

Outra ainda é a que faculta o acesso de todos às magistraturas, com a única condição de serem cidadãos, e sempre sob a supremacia da lei."1

 

Sem discutir aqui o que o Filósofo entendia por «cidadão livre», rapidamente se verifica que a segunda espécie de democracia - também denominada «censitária» - não vingou. Assim como ficou pelo caminho a terceira espécie de democracia, que faz depender o acesso aos cargos públicos da irrepreensibilidade do cidadão.

 

Em todo o caso, não será decerto exagerado considerar que a realização de uma «cultura democrática» consiste essencialmente no respeito e consideração dos princípios enunciados naquela análise de Aristóteles.

 

Aliás, cerca de 2300 anos depois desta teorização do Filósofo, em 2 de abril de 1976, a Assembleia Constituinte da República Portuguesa aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa, onde boa parte dos princípios aristotélicos estão justamente inscritos. Logo no artigo 2º se diz que «a República Portuguesa é um Estado de direito democrático».

 

E este «Estado de direito democrático» baseia-se em quê? «Na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes», diz o mesmo artigo 2º.

 

À parte a «separação e interdependência de poderes»,  que de imediato nos lembra Montesquieu (1689-1755), os fundamentos do «Estado de direito democrático» português têm uma óbvia relação genética com o Filósofo. Sem esses fundamentos, não há Estado de direito democrático.

 

E a coisa é assim de tal modo que «o Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática», diz o artigo 3º da Constituição. Talvez alguns preferissem que a Constituição se subordinasse ao Estado, mas tal é justamente rotulado de falta de cultura democrática. Isso seria uma espécie de primeiro dia do resto da vida de certos direitos e liberdades fundamentais. Seria a inversão do primado da Lei, como facilmente se percebe, e Aristóteles também ficaria por cumprir.

 

Ora, esta ideia de um Estado democrático também se realiza localmente, pois «a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais» (artigo 235º da Constituição). Daqui deriva o ato eleitoral do próximo dia 29 de setembro.

 

Ou seja, quando o cidadão votar, no próximo dia 29 de setembro, dá cumprimento à ideia aristotélica de democracia, num sistema dito representativo. Ainda que tal não a constitua totalmente, a isso se chama levar à prática uma cultura democrática.

 

J. P. Galhano

 

 

(1) Aristóteles, Política, IV.1291b.30 e segs., tradução de António Campelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes.

 

 



Fonte: J. P. Galhano

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